domingo, 28 de março de 2021

JOAQUIM VERMELHO

 Hoje recupero uma publicação que fiz há alguns anos de homem que muito deu à cultura de Estremoz de um texto de uma entrevista do jornal "Planície" de 1958. Estes textos foram copiados na integra e não estão de acordo com as duas ultimas alterações do acordo ortográfico.

JOAQUIM VERMELHO(*)
Encontrei este texto nas minhas pesquisas pela internet, procurava nomes ligados a Estremoz e como não poderia deixar de ser, aqui fica uma entrevista de 1958 de Joaquim Vermelho, ao jornal Planície colocada a circular pela página BIG BANG cujo endereço está no final do post.


Á PROCURA DA GERAÇÃO PERDIDA
(*) Este depoimento de Joaquim Vermelho foi publicado no jornal «A Planície», 1-10-1958, inserido numa série de entrevistas intitulada À Procura da Geração Perdida

•31 anos. Marçano, empregado de escritório, cobrador, funcionário público nos intervalos da minha preparação escolar. Fiquei-me por funcionário. Nas horas vagas, a colaboração dos jornais e revistas; os versos ; alguns contos; crítica cinematográfica; várias peças; algumas tentativas de teatro infantil; esperiências de teatro adulto com grupos acidentais. Alguns anos de trabalho, na redacção de Brados do Alentejo, mostram-me os bastidores da imprensa de província. Com Marques Crespo e João Falcato colho ensinamentos. Trabalho na fundação do Cine-Clube de Estremoz e defendo ao longo destes primeiros cinco anos a consolidação da sua posição de baluarte de cultura viva num meio hostil. Questões de ordem familiar e económica retêm-me em Estremoz e, se me têm limitado os vôos, jamais calaram ou calarão em mim a ânsia de libertação constante a que me dou através de tudo, a que me dou desde que seja trabalho de espírito, melhoria ou aproximação de indivíduos».

JOAQUIM VERMELHO
AP - Escreves por vocação ou por dever?
JV - Em princípio, por vocação. Hoje, por uma necessidade interior que tem encontrado do lado de fora as maiores dificuldades e entraves, mas donde lhes vem também, e das mesmas, estímulos, embora pareça contraditório, que têm transformado essa vocação natural e necessidade - num dever.
- É um bom ou mau vício esse de escrever ?
- Por vício, entendemos sempre tudo, ou quase tudo, o que é nocivo. Pelo mal que faz ao indivíduo e à sociedade. Um vício é uma escravidão, mas esta de escrever liberta porque preso se encontra o indivíduo que tem algo para dizer e não diz, algo para escrever e não escreve. Os vícios de espírito são positivos porque são uma procura do indivíduo em si ou preocupado com os outros. Como vício, esta espécie é mais nociva no sacrifício para os próprios do que para os outros na parte que lhes exige de sacrifício, de abdicação, mas não será essa abdicação um prazer, esse aparente malbaratar de energias e tempo um revigoramento e uma vitória sobre o rodar ininterrupto dos ponteiros do relógio?
- Gostarias de te profissionalizar como escritor? Como prosador ou como poeta?
- Não entendo bem a profissionalização de todo e qualquer artista. Profissionalizar subentende uma obrigação que parece ter de cumprir-se dentro dum horário. Essa profissionalização poderia ser vantajosa para uns mas perniciosa para muitos outros. Defendo antes que se dê ao intelectual activo lugares na sociedade compatíveis com a sua vocação de defensor das causas do espírito. E há tantos, tantos lugares ocupados por ineptos e incapazes por esse país fora. Um exemplo: muitas das nossas bibliotecas bem precisavam de gente nova à sua frente, integrando-as na dinâmica que pede a sua existência por esse país fora.
Falas-me de poesia e prosa. Francamente que nasci com uma vocação maior para me exprimir em verso. Mas tenho tentado quase todos os géneros. Sou também um grande apaixonado pelas coisas de teatro.
- O ecletismo de géneros e assuntos a que te tens dedicado trouxe-te malefícios ou benefícios?
- Numa terra onde tão poucos somos a dedicar-nos a assuntos de espírito fatalmente que temos que vir a cair nesse ecletismo. Mas, por mim, direi que em tudo o que tenho pegado o tenho feito com a mesma sinceridade com que escrevo versos, com que a dou a meus pais, com que acredito no Homem. É essa crença que me faz desdobrar, multiplicar em mil pequeninas coisas onde deixo sempre um pouco de mim, mas que me faz mestre de tudo e oficial de nada. E assim, sem procurar ser verdadeiramente qualquer coisa, sirvo e defendo a causa espiritual e todos aqueles que me solicitam por ela. Numa época e num país onde a cultura faz sorrir como se fosse uma anedota, este problema de consciência sobrepõe-se-me a tudo o mais e creio que ele devia preocupar um pouco mais os nossos intelectuais e artistas que só trabalham de gabinete.
- Que estímulos tens recebido além da tua própria vontade?
- Bem poucos ou nenhuns. Por detrás dum interesse que surge há sempre uma razão alheia à cultura ou ao espírito. No meio provinciano onde trabalho, isso é regra geral. No entanto, quando me aparece uma boa vontade procuro servi-la. O que é pena é não haver continuidade nos esforços desenvolvidos. Lança-se uma semente aqui, outra ali... Faz-se uma colheita, mas não se torna a trabalhar a terra. Prova-se o pão de muitas qualidades, de tantas, que o público e gente da nossa terra, nem sabe afinal qual é o pão de primeira.
O estímulo, ainda que pareça incrível, já o disse atrás, vem-me das próprias dificuldades que me põem na frente, do próprio divórcio que noto na maioria das pessoas. É um problema de consciência que todo este estado de coisas gera e me faz viver em constante vigília, multiplicar os esforços e malbaratar o meu tempo, alargar o meu «vício». O encontro comigo, para me aproximar cada vez mais dos outros sem que eles se afastem de mim, é a procura, o fim por que caminho e trabalho.
- Em média, quantas horas escreves por dia?
- Quando tenho que comunicar escrevo, falo, sem noção de tempo. Não sei, porque nunca me lembrei de olhar para um relógio, quando tempo demoro e escrever um poema, uma peça, ou qualquer outro escrito. Só dou por ele quando não me realizo. A minha profissão e os extras para o que ela me não dá é que sei quanto de tempo me roubam a essa actividade. E que alegria e prazer encontrar-me com a caneta, não para escrever números e fazer contas, mas para garatujar letras que dêem forma e emoções humanas. Claro que todo o meu trabalho profissional pesa grandemente em tudo que escrevo e faço.
- Os jornais pedem-te colaboração ? E pagam ? Quanto e quais ?
- A colaboração pedida interessa-me pouco. E se não fosse a necessidade de contactar com um público mais vasto, dialogar com ele, daria bem melhor dedicar o nosso tempo a outras actividades do que estarmos escrevendo à procura do termo e da frase que a tesoura não corte, dos assuntos que possam levantar lebres onde nem sequer há moitas para se ocultarem. Pagarem-me colaboração foi coisa que só há bem pouco tempo conheci. Habituei-me cedo a uma coisa que nunca aceitei bem: o silêncio, o não obrigado.
- Livros na gaveta ?
- Não sei se alguma coisa do que tenho escrito poderia valer a pena publicar-se em livro. A grande maioria dela é de circunstância. Versos tenho, que, seleccionados, dariam dois ou três livros. Talvez uma ou duas peças de teatro fossem publicáveis. Talvez umas tantas críticas de cinema e dos problemas do nosso cine-clubismo formassem um volumezinho. Se tiverem validade não perderão com a demora. Pode ser que a oportunidade surja.
- Outras actividades?
- Jornalismo, teatro e cinema, muito e muito da minha vida tem ocupado. Com pouco mais de 13 anos já colaborava em Brados do Alentejo, na redacção do qual vim a trabalhar mais tarde. Depois surgiu uma tentativa de experiência infantil num Asilo em Estremoz. Alguns anos alimentei, através de muitas limitações, essa actividade, que procuro agora continuar um pouco mais consciente dos problemas complexos da mesma.
A luta por um teatro sério aqui, em Estremoz, tem sido intensa. O meio, agarrado à revista e à opereta popularucha, nada mais vê que isso. Esboça-se agora uma pequena reacção que não deixarei de aproveitar. Se existe em Estremoz um grupo capaz de servir uma causa destas por que não deixar trabalhar essa gente... A resposta é sempre a mesma.
A actividade cine-clubista tem ocupado desde há cinco anos a maior parte do meu tempo disponível. Impor um cine-clube, num meio alentejano como Estremoz, sem transigências nem desvios era e é um trabalho difícil. A cultura continua um fantasma que faz sorrir... a ignorância e está cada vez mais atrevida porque tem um grande número de factores a apoiá-la. E as entidades oficiais respondem por um certo fracasso que atinge estas actividades culturais e outras por essa província fora. Outros problemas as preocupam e os de ordem cultural passam por ser os menos importantes, para apoiarem mais generosamente as iniciativas de recreio que denominam pomposamente de culturais. Daí a confusão e a sarcasmo com que o público trata os que pretendem impor toda e qualquer iniciativa cultural pura.
Mas a obra do Cine-Clube de Estremoz, por entre indiferentismos e animosidades de toda a espécie, e de toda a gente, tem prosseguido e o clube, contando apenas com pouco mais de centena e meia de sócios, dos quase trezentos iniciais que teve, é, no movimento qualquer coisa de significativo, cujo estímulo lhe vem mais de fora do que da própria terra.
Claro que estas actividades muito tempo me tiram ao meu prazer de escrever mas não deixam de ser uma maneira de me encontrar comigo próprio e de me aproximar dos outros, de lutar pela crença de que vale a pena acreditar no Homem e trabalhar para o melhorar, lhe dar consciência da sua dimensão real e responsabilidade no Universo.

- Projectos ?
- A publicação de um livro de versos ou de prosa que particularmente me interessava sobrepõem-se agora duas coisas: assegurar a continuidade de obra do Cine-Clube de Estremoz e conseguir despertar o ambiente para o teatro sério, familiarizando o público com clássicos e modernos da arte dramática. Era-ma talvez mais fácil publicar um livro, mas creio que isso será menos importante e com isso beneficiarão também menos pessoas. Em qualquer altura sairá. Uma secção infantil de teatro permanente tenho também em mente. Esquecemo-nos demasiado das crianças embora continuamente usemos a lugar comum de que elas «são os homens de amanhã!». Trabalhar sem desfalecimento, sem arrefecimento, sem desculpas que ocultem preguiças e cobardias frente a dificuldades e limitações que em qualquer ambiente e tempo sempre havemos de encontrar. Lutar contra a divisão e dispersão. E é tanto, tanto como vês, o que ando a pôr em prática há muito : os meus projectos de sempre. Que não me falte a saúde nem a força de vontade para ir desenvolvendo em actos o que defendo quando escrevo. Não, não quero exigi-lo só aos outros. Esta coerência que presa à prática é uma batalha tremenda que não sei onde me levará...■
publicado por 

 Big Bang
http://pwp.netcabo.pt/b
.

1 comentário:

Unknown disse...

Adorei ler, sou de Estremoz e conheci o Sr.Joaquim Vermelho, ainda frequentei o cine-clube, e também o via na biblioteca. Partiu cedo demais, era um senhor dedicado ás artes e á cultura. Que nunca seja esquecido. Não sei se já deram o seu nome à alguma rua de Estremoz, gostaria que o fizessem pois merece ser recordado . Obg por ter recuperado esta entrevista. As minhas saudações
Carmen Movilha